ESPECIAL: Maria Julita Nunes, um talento guardado por 70 anos

Campina Grande, 20 de agosto de 2017  ·  Escrito por Inaldete Almeida Oliveira  ·  Editado por Emanuelle Carvalho  ·  Fotos de Inaldete Almeida Oliveira
Maria Julita

Poetisa e Cordelista Maria Julita Nunes

“Tempo bom foi o meu!”

Com os brasões da família feitos por uma de suas netas, decorando com orgulho a entrada principal da casa, Dona Julita me recebeu para uma boa conversa. Bem humorada e atenciosa, ela tem aquele semblante de quem está sempre pronta para dar um abraço. Nascida no ano de 1929, na cidade de Teixeira-PB, Maria Julita Nunes foi uma criança apaixonada pela cantoria. “Nasci na terra do cordel”, exalta ela.

Naquela época, as cantorias de viola eram realizadas aos sábados, dia de feira, nas “bodegas”, onde crianças e mulheres não eram muito bem vindas. Mas aquela sonoridade a atraía, e juntamente com uma amiga de infância, que viria a ser mais tarde personagem de um de seus livros, ficava escondida embaixo das mesas para poder ouvir as rimas entoadas naquelas violas.  Cada vez mais ela se encantava com aqueles violeiros e seus versos.

O que Maria Julita não sabia era que aquela fascinação não era por acaso, pois em suas veias corria sangue genuinamente poético, o que só veio a descobrir muito tempo depois, conta: ”na família de papai, eu fiz uma relação da família e elenquei mais de cinquenta poetas, viu? É um dom inerente à família Nunes da Costa”. Um dos criadores da cantoria era seu tataravô Agostinho Nunes da Costa, o “Velho”, que foi conclamado o Rei da Cantoria.  Ela abre um sorriso todo orgulhoso para falar sobre o parente “famosíssimo” Ugolino Nunes da Costa, considerado o precursor da poesia popular no Brasil.

Os versos das cantorias eram descritos naquela época, no que se chamava de “folhetos de feira”, e Maria Julita ainda se recorda dos primeiros que adquiriu “O Pavão Misterioso” e “A vida de Santa Filomena”, são alguns deles. Um dos cordelistas que ela mais gostava era João Martins de Ataíde entre tantos outros que sua memória já não ajuda a localizar no meio de suas lembranças. Mas não foi na infância que Maria Julita descobriu seu talento. Esse dom demorou setenta anos para ser despertado, e como ela diz, acidentalmente!

Em 1947, a família se muda para Campina Grande, e a paixão pela literatura de cordel foi embalada e guardada em algum lugar naquela mudança. E a vida seguiu, Maria Julita se casou, formou família, e trabalhou por muitos anos como Contadora. Formou-se em Direito chegando inclusive a fazer o registro na OAB, mas logo se desencantou com a profissão e voltou a dedicar-se aos números, em um escritório de contabilidade, onde trabalhou até se aposentar.

Mas surpreendentemente aos setenta anos, sua paixão pelos versos foi finalmente desembalada de algum cantinho do seu subconsciente.  Sua vida mudou totalmente, ao ler um cordel escrito por seu primo Ambrósio Agrícola Nunes, que contava a vida dele na cidade de Teixeira, e onde ele dizia ter vivido um tempo bom. Maria Julita sentiu-se desafiada a “responder à altura”. Achou um insulto que ele sendo bem mais jovem que ela, tenha dito ter vivido o melhor tempo de Teixeira “ah fuleiro! Tempo bom foi o meu”, afirmou ainda brava. E assim nasceu o primeiro cordel: “Direito de Resposta”. “Enviei pra ele e foi muito bem aceito e inclusive já serviu até de tema para trabalhos acadêmicos”, comenta ela orgulhosa do feito.

algumas de suas

Alguns cordéis preservados por Dona Julita

Depois desse cordel, novos desafios foram sendo lançados. Outra prima que segundo D. Julita, “o juízo é pouco”, sugeriu que ela escrevesse um livro sobre a cidade de Teixeira, e apesar de achar que não teria capacidade para tal feito, aceitou a peleja. Foi seu primeiro livro publicado: “Teixeira Terra do Nunca Mais”, a tiragem foi esgotada. Para escrever o livro ela foi de casa em casa, contando a história de cada família, e fatos irreverentes sobre os moradores, inclusive com os apelidos inusitados e a razão deles, o que a fez arrumar muita confusão, “contei algumas histórias e por causa disso eu fui ameaçada de “pêa” [surra]”, conta aos risos.

A partir daí, não parou mais de escrever, os temas são os mais diversos, como a vida do sertanejo, cultura popular, problemas sociais, educação e literatura nordestina. Ela enviou um de seus cordéis para o presidente da República, era sobre o Hino Nacional Brasileiro. Revoltada ao ver que os jogadores da seleção de futebol, não sabiam a letra do Hino, sentiu-se envergonhada e escreveu o cordel como protesto. Em poucos dias recebeu a resposta de Brasília, onde um assessor agradeceu e disse que o encaminharia ao Ministério da Cultura, e nunca mais soube do assunto.

Muitos convites passaram a fazer parte de seu cotidiano, palestras sobre cultura popular em escolas e até na universidade, passando a fazer parte de um projeto para a terceira idade, o Programa Interdisciplinar de Apoio a Terceira IdadePIATI da UFCG, onde também expunha seus trabalhos. Mas ao sofrer um acidente doméstico quebrando o fêmur, teve que se afastar do projeto e não retornou mais. “Era muito gratificante participar desses eventos”, mas hoje ela teme que as pessoas não mais se interessem pela literatura de cordel. Em sua família, por exemplo, ela não vê interesse dos jovens na continuidade nessa arte, “não como os de antigamente, como eles será difícil!”.

Diferentemente da sua época de infância, quando a mulher era discriminada no universo da cantoria e da poesia, ela não sofreu qualquer tipo de preconceito com sua obra, atribui isso ao fato de já haver muitas cordelistas conceituadas, que também servem de inspiração para seu trabalho. Para escrever em prosa, ela tem se inspirado em Lya Luft. Mas suas principais referências mesmo são os cordelistas mais antigos como João Martins de Ataíde, Rogaciano Leite, Antônio Marinho e outros. Apesar de admirar esses e outros grandes poetas, não segue seus padrões, prefere criar a seu modo, “de sua própria cabeça”, como ela mesma diz.  Nesses dez anos de trabalho ela já produziu dez cordéis, nove livros sendo um deles só de sonetos, e cerca de duzentas trovas.

“Se eu soubesse não teria

na velhice navegado,

juro que eu não queria

ver meu rosto enrrugado,

mas se o rosto enrrugou,

no coração rugas não há,

até hoje não parou

e nem deixou de amar!”

 

O trabalho que lhe rendeu maior reconhecimento foi seu primeiro livro, “Teixeira Terra do Nunca Mais”, tendo rapidamente vendido todos os exemplares, e pelo qual ela recebeu muitas menções positivas e satisfatórias: “foi isso que me incentivou a continuar, e eu escrevi o segundo livro,” Sempre Nunca Mais”, nesse aqui eu falo sobre a vida social de Teixeira, o que aconteceu na sociedade, festas; tudo!”.  

Mas grande parte de seu acervo pessoal foi perdido em uma enchente causada pelo rompimento de uma barragem no ano de 2011: “só não levou a minha vida, e o que eu mais senti não foi tanto a minha produção cultural, foram os arquivos da minha infância. Eu tinha tudo arrumadinho num baú de mais de duzentos anos que era herança da minha avó”. A água chegou a quase um metro dentro da casa, e o baú com suas memórias ficou boiando.  Ainda havia a esperança de recuperar ao menos o acervo daquele baú, mas quando a água baixou veio a grande decepção, o conteúdo estava impregnado de lama e quase nada pôde ser recuperado… Sua maior herança afetiva estava perdida! “E a coisa que eu mais senti, foi porque a única foto que existia do meu avô, pai do meu pai, que estava comigo… foi embora”. Mas agradece a Deus pelo milagre de ter sobrevivido, pois nessa ocasião estava sem poder se locomover devido à cirurgia do fêmur. Mas era preciso seguir em frente, pensar no futuro, recomeçar.

E ao falar sobre o futuro, ela diz se preocupar com a memória, que por vezes tem lhe “traído muito”.  Mesmo assim continua produzindo, e já tem um novo livro em fase final de conclusão. A divulgação do seu trabalho é outro anseio, pois ainda não encontrou apoio para a publicação. Outra preocupação é com a continuidade do cordel, mas é otimista em relação aos jovens, principalmente da cidade de Teixeira, que para ela é o berço do cordel. “Eles tem demonstrado muito interesse, muito mesmo, sempre procuram.”

Em sua simplicidade, ela diz que ainda não chegou ao patamar de se intitular poeta, poetiza ou cordelista, mas que se sente lisonjeada ao ser assim tratada. Aos risos ela se define: “ eu me considero uma pessoa normal, com algumas falhas, como outra qualquer! Agora; tenho um dom, Deus me deu esse dom que, aliás, eu herdei, vem de meus antepassados!”

Apesar de ter um grande número de trabalhos ela ainda não se sente realizada. “na vida literária não digo que estou realizada, porque a gente nunca se realiza, sempre tem algo que a gente quer ou deixou de fazer”, acrescenta ela.

 “Leia e propague a nossa literatura, não deixe o cordel morrer à míngua”

Ler e propagar a nossa literatura; não deixar o cordel morrer à míngua, são os pedidos da cordelista.

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