Repórter: Samya Amado
Fotógrafa: Gabryele Martins
Editora: Gabryele Martins

As celebrações ao orixá Xangô ocorrem em junho e em setembro, em diversos lugares do país. A divindade do fogo, que representa a justiça e traz consigo a força das pedreiras e trovões, é sincretizado com São João Batista, São Pedro e São Jerônimo, por isso há festejos durante esses meses.
A professora e historiadora Mayse Amorim, explicou como se deu esse processo: “O sincretismo nada mais é do que uma incorporação de práticas, de rituais, de ideias que permeiam o imaginário pra que seja possível a prática de crenças/ideias dentro de um determinado contexto. Eles [colonizadores] chegam em um território onde as pessoas/os povos originários, têm as suas práticas, têm as suas crenças, os seus ritos, têm a sua vida constituída em torno disso e barram essa manifestação com o diabo [intolerância/discriminação] que eles acabam aportando nas terras brasileiras”, disse.

Aqui no Brasil, o colonialismo e a imposição do catolicismo [pelos portugueses] aos povos escravizados e originários, acabou gerando novas formas de cultos/práticas. Mayse explicou que a hegemonia estava nas mãos dos brancos, então os povos precisavam se curvar perante eles. As religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda, acabaram incorporando vários elementos do cristianismo nesse processo sincrético, para continuarem existindo: “O que os africanos, indígenas/afro-brasileiros fazem, na verdade, é tentar manter viva as suas tradições, a sua memória e a sua cultura, só que adaptada à determinadas imposições portuguesas. Então quando eles estavam cultuando a imagem de Nossa Senhora da Conceição, por exemplo, na verdade estavam rezando para Iemanjá; eles acabaram fazendo essa adaptação, essa “comparação” pra conseguir manter viva as suas tradições”, disse a historiadora.

No último dia 28 de junho, no Pátio de São Pedro, em Recife, a divindade Xangô foi cultuada pelos seus devotos e a emoção do evento chamou a atenção de quem passava pelo local, que é um famoso ponto turístico da capital pernambucana. A Festa do Fogo é uma ação da Caminhada dos Terreiros de Pernambuco e conta com o apoio da Prefeitura do Recife, através da Secretaria de Cultura e Fundação de Cultura Cidade do Recife.
Chacon Viana, que é Babalorixá, explicou um pouco sobre a dinâmica da festa: “Esse evento é uma memória, uma homenagem ao orixá Xangô. […] Ele representa a queimada e ao mesmo tempo o orixá do fogo e também é considerado, em Pernambuco, o patrono do estado e o rei/orixá da justiça. […] Aqui [no evento] tem uma diversidade de terreiros, são mais de 30 terreiros na representatividade de cada Babalorixá e de cada Ogã e de cada Ekedi e de cada Yabá”, disse.
Pai Darlan T’Oyá falou da importância de apresentar o Amalá e o Beguiri de Xangô para quem passa pelo evento: “A importância é de trazer o conhecimento para aquelas pessoas que não tenham esse conhecimento da cultura e das comidas sagradas. […] Quando as pessoas adentram na religião, elas veem que as coisas são completamente diferentes. […] O maior desafio é enfrentar o preconceito. A gente só pede respeito e mais nada!”, finalizou.

Daniela Salvador (30), está no candomblé há pelo menos um ano e meio e falou sobre o sentimento de participar da celebração: “A gente vai quebrando paradigmas e vai destruindo preconceitos e o Pátio é um território muito ancestral. Isso só reafirma que a gente tá no caminho certo e que a gente tem que mostrar mesmo e incentivar com projetos, editais, pra o povo de terreiro também mostrar a sua cultura pra poder ter mais espaço”, pontuou.
Escolher outra religião deveria ser algo normal, já que as nossas crenças podem mudar ao longo da vida, mas nem sempre é uma tarefa fácil, trazendo desafios e solidão para muita gente. João Victor (19) está no candomblé há cinco anos e contou um pouco da sua experiência com essa mudança: “Foi difícil, pois nasci na igreja cristã evangélica, então quando eu saí da igreja as pessoas ficaram tipo ‘poxa, tu foi logo pra essa religião?’ então foi bem complicado. Acho que de 100 amigos, ficaram 2. Eles dizem que hoje em dia eu estou ‘do outro lado’, mas eu prefiro ser feliz do que ter um bocado de amigos”, contou.
João falou que começou a frequentar a Festa do Fogo há dois anos e pontuou os aspectos que são mais marcantes para ele: “Eu acho muito gratificante o nosso povo estar na rua, cantando, fazendo aquilo que gosta, não lembrando [apenas] da escravidão, mas fazendo aquilo que eles mais gostavam de fazer: louvar, se alegrar e cultuar entre os irmãos. […] Acredito que falta mais amor ao próximo. Quando a gente sai do terreiro aqui pra fora, as pessoas veem que não é como dizem. Eles não veem o diabo. Na verdade, eles só veem pessoas bem arrumadas, louvando àquilo que eles pensam que é uma coisa, mas não é”, finalizou.

Embora o sincretismo religioso faça parte da construção de história e cultura do nosso país, a intolerância religiosa, a perseguição às religiões de matriz africana e aos povos originários estão bem presentes na atualidade. “A nossa cultura está permeada por essa visão muito eurocêntrica, com essa visão de salvação, como se nós tivéssemos sido salvos de algo que a gente só escapou porquê o português chegou aqui para nos tirar desse buraco. […] Pelo contrário, isso [sincretismo] impactou em muitos aspectos que resultam até hoje em toda a nossa realidade social, cultural, econômica e que nos impacta de modo muito negativo”, explicou a historiadora Mayse Amorim.
O racismo estrutural, a falta de conhecimento e desinformação espalhada por outros líderes religiosos que perpetuam discursos fundamentalistas e/ou conservadores, só fazem crescer essa violência. Uma sociedade imbuída de uma visão colonialista, só aumenta ainda mais as chances de vandalismo em templos, discriminação no mercado de trabalho, agressões e ataques à líderes religiosos que são vistos quase que diariamente no nosso país.
É necessário olhar a História a partir do princípio, de quem já estava aqui antes da colonização. A cultura existia, a vida existia. Os povos originários já tinham as suas crenças. A identidade cultural e religiosa dos povos colonizados sofre para manter-se presente, mas uma festa como essa, em praça pública, é um sinal de resistência de um povo que passou por diversas tentativas de apagamento histórico, mas que segue na luta para manter viva a chama do seu axé, apesar de toda opressão sofrida ao longo da história.
Tata Kambondu Francisco Tabalsimbe reforçou quão indispensável é essa ação no Pátio de São Pedro: “É importante que a gente sempre esteja fazendo eventos como a Festa do Fogo e a Caminhada Dos Terreiros de Pernambuco pra que a sociedade se acostume, veja e respeite o nosso povo. Esses eventos servem para que a gente possa pedir respeito à sociedade e às outras religiões, para que respeitem as matrizes africanas que foram as primeiras religiões aqui no Brasil”, finalizou.
Viva a Festa do Fogo! Salve Xangô, o Rei da Justiça!

A implementação de políticas públicas, promoção do respeito, diálogo inter-religioso e fortalecimento da educação, faz com que cenas de violência não sejam vistas como normais/banais. Proteger os direitos das minorias e combater os discursos que incentivam essa intolerância é uma pauta para já.
Para denunciar esse tipo de violência, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) oferece diversos canais de atendimento com objetivo de facilitar o registro da denúncia:
Canais do Disque 100: Ligação gratuita, basta discar 100;
WhatsApp (61) 99611-0100;
Telegram (digitar “direitoshumanosbrasil” na busca do aplicativo);
Site da Ouvidoria (https://www.gov.br/mdh/pt-br/ondh/);
Videochamada em Libras (https://atendelibras.mdh.gov.br/acesso).

Glossário
Babalorixá: chefe espiritual e administrador da casa, responsável pelo culto aos orixás.
Ekedi: cargo feminino de grande valor, a de “zeladora dos orixás”.
Ogã/Ogan: é o responsável por quase tudo, desde manutenções diversas das instalações até a sua principal função que é tocar e comandar os rituais.
Yabás: significa Mãe Rainha e é o termo dado aos orixás femininos Iemanjá e Oxum, mas no Brasil esse termo é utilizado para definir todos os orixás femininos em geral, em vez do termo Obirinxá, que seria o mais correto.
Beguiri: alimento feito com quiabo, castanha, amendoim, camarão e carne bovina; regado com azeite de dendê e temperado com pimenta, sal, cebola e cebolinha.
Amalá: é uma espécie de papa feita com farinha de mandioca e água.