Conheça a arte de Nevinha, ceramista de Itabaiana, que transforma o barro em panelas pretas, preservando um legado único
Repórter: Diney de Melo e Marcele Saraiva
Fotografia: Mikaelly Franklin e Jonas Olliver
Editora: Ada Guedes
Especial em parceria com Campina Cultural
Fomos até a cidade de Itabaiana, interior da Paraíba, para conhecer uma tradição centenária que resiste ao tempo nas mãos habilidosas de Dona Nevinha e seu marido Tôta. Há anos, os dois se dedicam à produção das famosas panelas pretas e outros objetos utilitários de barro. Conhecidos na região por seu trabalho artesanal, eles mantêm viva uma técnica antiga de manuseio do barro, passada por gerações, que ainda encanta pela beleza, funcionalidade e sustentabilidade. Porém, a particularidade de Nevinha que faz muito sucesso são as panelas pretas.
Diferente do que muitos pensam, as panelas não são pintadas ou tingidas com nenhum tipo de pigmento ou tinta. A cor preta é resultado exclusivo de uma técnica de queima do barro, descoberta por acidente e cuidadosamente preservada em segredo por Dona Nevinha ao longo dos anos. Esse processo natural e minucioso confere às peças uma tonalidade especial, tornando-as um verdadeiro tesouro artesanal e valorizadas na produção de cerâmicas da região. Nessa entrevista, Dona Nevinha compartilhou conosco detalhes sobre o processo de fabricação dessas panelas, além de revelar como seu trabalho através do barro transformou-se em um legado cultural único.
Repórter Junino: Como começou o seu trabalho com as panelas de barro?
Nevinha das Cerâmicas: Assim que eu casei com Tôta, ele continuou trabalhando nas produções de cerâmicas para outras pessoas. Eu, inicialmente, não tinha envolvimento com isso. No entanto, após cinco ou seis anos de casamento, percebi que ele tinha um talento especial para o trabalho. Foi então que decidi sair do comércio e me dedicar ao lar, enquanto ele continuava trabalhando com cerâmicas. Naquela época, produzia-se muito pote, filtro, caqueira para plantas e até quartinhas, recipientes típicos para armazenar água. Apesar do talento dele, eu comecei a perceber as dificuldades que enfrentávamos com o pouco que ele ganhava trabalhando para outras pessoas. Então, pensei: ‘Por que não abrir um ateliê para nós?’ Ele acreditava que não daria certo e eu insisti, pois sabia que o trabalho dele era bom e que, onde ele fosse, as pessoas o seguiriam pela qualidade. Na época, tínhamos apenas cem cruzeiros emprestados do Banco do Brasil. Descobri uma casinha aqui perto, numa rua próxima, o imóvel estava bem deteriorado, com a parte de trás praticamente destruída e apenas a fachada preservada. Montamos um pequeno galpão, improvisando paredes com plástico, daquelas que soltavam pingos de água por conta da chuva. Fizemos um forno, coberto de forma simples e instalamos nosso ateliê. Mesmo sem condições financeiras, eu me envolvi completamente no negócio. Quando chegava um caminhão de barro, eu mesma carregava os balaios com uma pá, enquanto ele os colocava na cabeça para transportar. Quando chegava a lenha, eu também ajudava. Era um trabalho duro, mas as pessoas faziam juntas. Lembro que para queimar o forno passávamos a noite toda acordados, como se estivéssemos em um velório, esperando o dia amanhecer para finalizar o trabalho.
RJ: Como é o processo de produção dessas panelas? Quais são as etapas?
Nevinha: Uma panela é fabricada em cerca de cinco minutos. Esse é o tempo de produção inicial. Depois de pronta, a peça vai para um cantinho, ainda molinha, e fica lá aguardando o tempo necessário para receber o acabamento. Após essa etapa, é preciso esperar mais um dia para fazer o polimento. Em seguida, a panela vai para a secagem, manuseamos cada peça de barro de seis a oito vezes até que ela esteja pronta para ser entregue ao cliente. Uma peça leva, em média, cinco dias para ficar pronta. A queima, nós realizamos uma vez por mês, porque nosso material é pequeno. Apesar do forno ser grande, precisamos reunir bastante peças para que ele seja utilizado de forma eficiente. Todo o material que temos aqui está acumulado para uma única fornada que engloba entre trezentas e setecentas peças, dependendo do tamanho das peças. Quanto às ferramentas, é necessário usar algumas. A enxada, por exemplo, é essencial para cortar o barro. Também usamos uma raspadeira para raspar o barro. Mas, no geral, usamos poucas ferramentas. O mais importante são as mãos.
Jornalista: Nesse processo, qual é o maior desafio e o que é mais gratificante?
Nevinha: A parte mais gratificante é tirar uma fornada com 700 peças de louça, todas inteiras. O mais importante é a queima correta. Já o maior desafio é colocar as peças no forno e não saber exatamente como elas vão sair. Fica sempre aquela expectativa, sabe? Existe um medo. Quando a gente coloca a louça no forno, ficamos ansiosos para saber o resultado. Não há sensação melhor do que abrir o forno e ver que nenhuma peça quebrou. O forno é um grande desafio nesse processo.
RJ: Como você vê o futuro dessa tradição? Existe interesse dos jovens em aprender o ofício?
Nevinha: Infelizmente, a tendência é acabar. Provavelmente, depois que eu fechar os olhos e Tôta também, isso tudo aqui vai acabar. Meus filhos não aprenderam, essa geração de jovens de hoje não querem mais aprender, não têm nenhum interesse. Até poderia aparecer alguém, mas só se fosse para pagarmos um salário e pagar para ensinar não é fácil. Além disso, não querem saber desse tipo de trabalho que há uma parte braçal. O barro, antigamente, era preparado de maneira diferente. Hoje ele já vem passado numa máquina, mas o certo é ser pisado com os pés. É assim que deveria ser feito, pisado de pé. No entanto, a tecnologia está nos ensinando formas de melhorar o trabalho e torná-lo mais fácil. Antigamente, o barro era cortado com enxada, molhado, jogava-se areia do rio no chão e começávamos a pisar com os pés para quebrar todas aquelas partes mais duras e tirar os ‘piolhos’ do barro até ficar bem macio. Hoje, as pessoas chegam aqui e já pegam uma massa fina e ficam animadas, mas quando eu digo para irem ao mato, encherem um saco de barro, trazer, cortar e molhar, todos desaparecem. Se houvesse um tipo de ‘Bolsa Família para estudantes’ ou ‘Bolsa Família para aprender arte’, aí sim eles viriam.
RJ: Para manter o legado das panelas pretas, a senhora revelaria o segredo da queima?
Nevinha: Muita gente me pergunta: ‘Nevinha, como você faz essa queima preta? Pode contar o segredo?’ Eu respondo que não, que essa queima preta é um segredo meu. Se for para manter o legado, eu compartilho. Mas, antes de tudo, a pessoa tem que aprender a fazer as peças, claro. Porque já dei muitos cursos de cerâmica, e começo com 25 alunos, mas termino com 5. No início, eu levo tudo pronto para eles e ficam animados. Mas quando eu digo: ‘Agora vocês precisam procurar na cidade de vocês a matéria-prima. Peguem um saco e uma enxada e vão pro mato’, a coisa muda. Na primeira vez que eles vão ao mato para procurar o barro, já começam a desistir. Quer dizer que querem moleza, mas trabalhar com barro não tem moleza.
RJ: Depois de consolidar o sucesso das suas panelas de barro, a senhora ainda almeja algo em sua vida?
Nevinha: Não, eu já estou satisfeita com o que tenho. Já estou com 70 anos. Não adianta mais correr. O que eu queria fazer, eu já fiz. Agora vou parar e deixar o tempo correr, até ver o que Deus quiser. Não adianta mais correr atrás de nada. O que tinha que ser feito, foi feito. Meus filhos já estão criados, cada um em sua casa, com suas famílias, agora só restou eu e meu velho. Estamos aqui, trabalhando até quando der. Vamos viver a vida ou morrer, ou sei lá… ir para o Carnaval.
Essa entrevista com Dona Nevinha não apenas destaca o valor de suas panelas pretas de barro, mas também reflete a importância de preservar tradições culturais que carregam histórias e identidades. Em um mundo onde a produção industrial domina, o trabalho artesanal de Dona Nevinha se sobressai como um símbolo de resistência cultural e respeito pela natureza. Suas panelas, além de representarem um utensílio doméstico de alta qualidade, são a materialização de uma herança que ela se esforça em manter viva.