Texto: Sarah Cristinne
Fotos: Arquivo pessoal
Edição: Fernando Firmino
“Ai que saudades que eu sinto, das noites de São João,
Das noites tão brasileiras,
Nas fogueiras,Sob o luar do sertão…”
Ouvindo a canção ‘Noites Brasileiras’, de composição de Zé Dantas e Luiz Gonzaga, enquanto escrevo esse texto, consigo perceber claramente que nenhuma voz me remete tanto às festas de Santo Antônio, São João e São Pedro como a de Luiz Gonzaga do Nascimento. Esse apego sem dúvidas, se deve, primeiramente, ao fato de eu ter nascido no chão da mesma serra pernambucana, que, numa sexta-feira 13 de 1916, o azar pediu arrego para a sorte, e ali nasceu o menino que um dia seria o Rei do Baião. Seja no sertão, no forró com o gás derramado e o chão batido, ou no meio do Parque do Povo aqui em Campina Grande, ouvindo ‘olha pro céu meu amor’ com uma exposição pirotécnica e um palco super produzido, existe ainda a alegria de saber que no meio de todo o forró moderno, com tantas batidas diferentes e que apresentam um outro tipo de Nordeste, – aquele distante da seca e da luta, Luiz Gonzaga resiste sempre sendo Luiz Gonzaga, a figura primeira que nos projetou para o mundo. Por isso esse texto em primeira pessoa.
O que acontece nos últimos dias para que todo mundo fale exclusivamente da saudade do passado, foi que com o vírus cruel do afastamento, nosso mês de junho enfeitou-se, em 2020, não de bandeirinhas coloridas, balões de plásticos e chapéu de palha, mas de memórias revisitadas em fotos, relatos, e afetos. Foram memórias afetivas como essa minha, que pedi licença para visitar também as da minha família e amigos -, e fui fazendo de todas as nossas histórias, um grande quadrilhão meio improvisado.
“Quem quiser plantar saudade,
Escalde bem a semente,
Plante num lugar bem seco,
Onde o sol seja bem quente,
Pois se plantar no molhado,
Quando crescer mata a gente”.
Com esse verso de Antônio Pereira, que considero a mais completa representação da saudade, que eu decidi começar esta parte da história. Por telefone, pergunto a minha avó, dona Maria do Carmo, qual a lembrança junina que ela mais se recorda. Ela me aponta que é agora que retornamos alguns anos na boléia do destino… Em 1957, na cidade de Princesa Isabel, sertão paraibano, a minha avó estudava no ‘Colégio Monte Carmelo’, um colégio de freiras carmelitas da época. Ela nasceu no dia 13 de junho, dia de Santo Antônio, e decidiu fazer uma simpatia ao santo casamenteiro, onde se colocava papeizinhos dobrados na água com todas as letras do alfabeto. Rezava-se a oração, naturalmente católica, ‘Salve Rainha’, até o verso que dizia: “…Mostrai-nos, Jesus…” e, assim, a primeira letra do nome do seu futuro marido estaria aberta, boiando na água. Parece que consigo ver todas aquelas mocinhas juntas na ânsia de um sinal divino. É assim que minha avó recorda a primeira vez que viu a letra “A”, aberta na água. E foi em dezembro daquele mesmo ano que ela bravamente sairia do colégio de freiras diretamente para casar-se com o Antônio da sua vida. A Paraíba com certeza se faz para além dos “Zés’’ de Jackson do Pandeiro, mas de muitos Antônios também. Quase 20 anos depois, estaria minha avó como a professora da rede estadual de ensino de Pernambuco lendo um discurso para homenagear Luiz Gonzaga. Luiz assim, na sua frente: sério, prestando muita atenção em tudo que ela dizia. A foto desse momento está ilustrando este texto, mas o que mais ficou na lembrança da minha avó não está registrado em outro lugar se não em sua memória: foi o beijo o Rei do Baião que ele deu-lhe na mão.
Sempre há um toque bem detalhado por todos nas histórias que a família revisita. As festas, de forma muito humilde preparadas, contavam sempre com o apoio coletivo: A vizinha fazia a canjica, os homens se juntavam para pagar ao sanfoneiro, a gorjeta dos outros ajudantes eram em forma de uma boa dose (se a cana fosse boa), e a pamonha… bom, essa dava mais trabalho, tinha que juntar mais gente para fazer, e quanto mais gente ajudando, mais acirrada era a luta para ‘raspar a panela’. As crianças, claro, fazem parte de todo o processo. “Era criança correndo, criança derramando comida no chão, criança chorando, criança apertando cachorro! Pense numa agonia!”. E mesmo sabendo que, cinco minutos depois, estariam todos descalços ao redor da fogueira, com as mãos sujas de pólvora de bombinha dos mais diversos luxos de 25 centavos, as mães arrumavam perfeitamente os cabelos, e botavam os vestidinhos típicos que a noite especial exigia.
Revisitar: o São João de ontem e de hoje…
E foi justamente por causa da palavra revisitar, que parei um pedaço da minha tarde para ouvir o colega Matheus Araújo falar (através da distância tão próxima de uma live) sobre a expressão ‘O São João de ontem e de hoje’, e teceu tão bem o tema acompanhado do querido professor Jurani Clementino, autor do livro “Memórias Sertanejas”, que relatou, que do Ceará, de onde ele vem, São João e São Pedro são os santos mais festejados, mas que a festa para ele tem mesmo é gosto de “pão de arroz”, degustado às margens da fogueira – uma espécie de cuscuz feito com a massa de arroz -, podendo-se colocar, amendoim, gergelim ou coco. Ele diz que é uma delícia, e eu não tenho dúvidas. Ele fala também dos ensaios para as quadrilhas que ficaram na sua memória, passos improvisados, mas que tinham um toque especial da poeira que subia.
Além da cor, da comida e do som, um dos pontos mais especiais do São João é ser a festa democrática – que une, e que tradicionalmente não há nada de glamour e grandes palcos como as festas feitas para turistas. Para quem pode ir a zona rural, ou participa de São João de bairro, numa perspectiva mais familiar, talvez ainda tenha a sorte de realmente ter a experiência da maior valorização da cultura, do espaço para músicos que não estão diretamente no mercado tão esmagador, e para as quadrilhas que não eram estilizadas como as dos concursos de quadrilha dos grandes centros… São as reconfiguração dos festejos juninos.
A mesma coisa sente a atriz Monika Lima, que organizou o arraial ‘Agora é que são elas’, em 2002. Homens e mulheres invertem os papéis, e pelo improviso do momento, a noiva da noite acabou tendo que entrar em cena numa carroça de mão. Figurinos simples e um dançarino tinha que manter uma personagem com uma guitarra feita de isopor…
Outras histórias e muitas recordações
Os momentos mais simples ficam mais fortemente impressos nas nossas recordações… Thiago D’angelo, jornalista e servidor público, cresceu no Parque do Povo. O seu avô montou uma barraca desde o primeiro ano da festa até meados dos anos 2000. A festa nunca teve muito o seu estilo, mas faz parte sem dúvida das suas melhores memórias. Thiago contou que dormia em cima do freezer. Quando abriam o freezer para pegar alguma bebida, Thiago rolava para o lado e batia na parede, quando fechavam, ele voltava para o meio. Ao passo que foi crescendo começou a ajudar na montagem e desmontagem de todo aquele processo, e começou a enxergar a festa de um jeito que podia e queria aproveitar. Percebeu que abrir o freezer a hora que quisesse tinha virado seu maior privilégio, “Comer e beber de graça, eita tempo bom!”, li a frase com a empolgação e saudosismo da sua voz. A dona da barraca do lado virou amiga da família, acompanhou o processo de crescimento de Thiago, da festa, e dos seus comércios, e as pessoas podiam nem ter contato durante o ano inteiro, mas no São João estavam ali: unidas para dançar, para compartilhar, e para se juntar na hora do bater da fotografia. Essa que está aqui, também ilustrando a matéria, foi um registro desses segundos de vida eternizados.
Se teve arraial online, fogueira digital, comidas típicas e tudo o mais, conseguimos escapar saudosos, vivendo esse momento de uma forma diferente, mas o calor humano e a arte do encontro que o mês de junho tem, com abraços dançantes e demorados, deu um pulo da cobra e não sabemos mais quando retornamos pelo mesmo caminho da roça… “Terminou o mês de junho e acho que nós também terminamos, acabados em saudade”, disse Yasmim Macêdo, repórter da TV Itararé, que me alega que ama carnaval, mas que sua carne é, indiscutivelmente de São João.
Yasmim tem razão quando diz que São João parece o nosso Natal: balão de estrela guia, chuva de fogos como ouro incenso e mirra, a ceia é farta, o milho, com um milhão de utilidades, faz pamonha canjica, mungunzá e xerém. É assado, cozido e comido, parecendo aquele abraço quente que nos preenche de dentro pra fora. “São João é lembrança. É minha mãe costurando com esmero a roupa da quadrilha, é minha madrinha trançando os cabelos e amarrando o laço, colocando o arranjo no topo da cabeça. Será que hoje tem cestinha de flores? ficar sem São João, sem a materialização dessa festa que tem lugar no peito de cada nordestino foi difícil, mas a fogueira está no coração da gente, São João também é o que nós somos e estaremos aqui todos os anos fazendo o nosso arraiá nas estrelas”, ela me escreveu, e me mandou uma letra de seu pai, o músico Capilé.
“Coração dispara, a gente vê na cara
A felicidade que é
O povo grita “Viva!”
Contagem regressiva:
‘Três, dois, um!’
É forró no pé
E a fogueira acesa no coração
Brincadeira, sorriso na multidão
Toda sintonia, tecnologia
Que o rádio já entrou no ar
E o forró viaja, na TV, nas páginas
Tocando em todo lugar
Que delícia
O mundo inteiro escutou
A notícia que a festa já começou
Até parece uma festa no céu,
Um colorido cristal multicor
Brilhando estrelas em um carrossel
E eu dançando com você meu amor
Ê, Ê , Ê, Que beleza!
Ê, Ê, Ê, É o arraial nas estrelas.”
Vá me desculpando, sei que eu me estendi demais nesse varal de saudades, mas depois do arraial das estrela, já vou embora, caro leitor. Esse ano, o fim da festa já chegou. Mas você pode conferir outras memórias de São João no perfil do Repórter Junino no Instagram. O que não falta é gente com saudade… e memórias!