Reconstruindo o São João pela memória: O privilégio de quem viveu a tradição

Campina Grande, 31 de maio de 2025

Um passado contado pelas lembranças de Vicente


Repórter: Glória Borges 

Fotografia: Glória Borges 

Editor: Sophia Oliveira 


Nas últimas décadas, o São João passou por muitas transformações. O que antes era celebração de rua, terreiro e vizinhança hoje se mistura a palcos grandiosos e programações comerciais. As tradições, antes passadas de geração em geração, foram sendo substituídas por novas formas de viver a festa. nas lembranças de quem viveu o São João raiz, ainda arde uma chama que o tempo não conseguiu apagar.

Sentado na calçada de sua casa, à sombra de um pé de planta, Vicente Borges, 63, olha o tempo como quem folheia um álbum antigo. Nascido e criado em Gurjão, no interior da Paraíba, carrega nos olhos o brilho da saudade e, nas palavras, o calor de um tempo em queo São João era de terreiro, não de palco.



“Reunia a família todinha em volta da fogueira. Era tradição mesmo.” Assim começa o relato de Vicente, resgatando memórias passadas. A fogueira era o centro da festa. Feita com lenha verde e colocada contra o vento, para demorar mais a queimar. Em volta dela, todos se reuniam em uma noite recheada de brincadeiras, música e comidas típicas. 

“A gente assava espiga de milho na palha mesmo, depois fazia a brincadeira das brasas na bacia e pulava fogueira.”


Mostrando onde ocorriam as festividades no período junino. Foto por: Glória Borges

Na brincadeira das brasas, a pessoa precisa pular a fogueira três vezes e, em seguida, colocar uma bacia com água ao lado dela. Depois, deve pegar duas brasas da fogueira, cada uma representando uma pessoa, e jogá-las dentro da água. É preciso esperar um pouco e observar: se as brasas se aproximarem e permanecerem juntas, isso indica que o casal tem futuro e vai se casar. Caso elas se afastem, quer dizer que o casamento não vai acontecer. As comidas típicas eram um dos maiores atrativos da festa, a canjica feita em um grande caldeirão, a pamonha e o milho assado não podiam faltar. 

Mas o mais impressionante das festividades de São João , segundo Vicente, era um tio seu, uma figura lendária da família que andava sobre as brasas e não se queimava. Até hoje ele não consegue explicar tamanha façanha. 

No terreiro, o forró era feito com um violão, triângulo, e zabumba improvisada com uma batata de agave, batida com colheres, além das vozes de quem estava presente. Mas nem tudo resistiu ao tempo. “As tradições se perderam. Hoje em dia, raramente se acende uma fogueira. Tem muita proibição…”


Um saudoso olhar caririzeiro, lembranças de um passado ainda vivo nas memórias. Foto por: Glória Borges

As brincadeiras ficaram no passado, assim como as vestimentas simples, que deram lugar a fantasias mais elaboradas e estilizadas. As quadrilhas atuais são visualmente bonitas e chamam atenção, mas seguem muito mais uma tendência de moda do que a tradição. Antigamente, as apresentações eram mais autênticas: as pessoas dançavam com as roupas que realmente usavam no dia a dia, refletindo sua realidade e simplicidade, o que trazia um encanto especial para a festa.

Com os olhos embargados e saudosismo em sua fala, Vicente afirma:

“Metade da minha vida eu vivi do jeito dos meus tataravós. Um mundo difícil, mas puro, natural, sereno. E agora vivo num mundo completamente diferente.”


Entre memórias, as fotos são a melhor fonte de recordação. Foto por: Glória Borges

Enquanto o sol paira firme sobre a cidade de Gurjão, fica a certeza: pode até faltar lenha na fogueira, mas na memória de Vicente, o São João continua aceso. E talvez seja assim que se mantêm vivas as verdadeiras tradições: não nas redes sociais, mas nos corações que ainda reconhecem o cheiro de milho assado e o estalo das brasas.


Símbolo tradicional dos festejos juninos: Fogueira em brasas. Glória Borges

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