ESPECIAL | Entre letras, rimas e canções: Encontro de Cordelistas da Paraíba 

Campina Grande, 30 de junho de 2019  ·  Escrito por Sarah Cristinne, Edson Tavares e Mariana Caetité  ·  Editado por Fernando Firmino  ·  Fotos de Ana Cláudia, Thiago Albuquerque e Carla Patrícia

 

O Encontro de Cordelistas esteve num dos lugares mais representativos da arte: a Feira Central de Campina Grande. Foto: Ana Cláudia

A FLIC – Feira Literária de Campina Grande organizou, pelo segundo ano consecutivo, o Encontro de Cordelistas da Paraíba. O evento aconteceu durante todo o dia em localidades diferentes (Feira Central, Cine São José e Pirâmide do Parque do Povo), visando expandir ainda mais o seu público. O encontro começou na Feira Central, com todo o clima que o local merece: tombado como patrimônio imaterial, cultural e histórico da cidade. O evento contou com a presença de vários cordelistas, figuras amantes da literatura, até pessoas que passavam para fazer compras, e acabavam parando para admirar a arte. Esteve também prestigiando o evento políticos e agentes públicos como a senadora pela Paraíba, Daniela Ribeiro, acompanhada da secretária de Desenvolvimento Econômico de Campina Grande, Rosália Lucas.

A programação da manhã contou com apresentações infantis, e declamações de cordel.  A ideia do movimento este ano foi democratizar o acesso à literatura, devolvendo ao cordel o espaço que lhe cabe, e onde tudo começou: próximo do povo. “Quando a gente idealizou a feira queríamos um espaço privilegiado para o cordel. Ano passado, o evento aconteceu  na própria FLIC, mas este ano queremos tirar dos dias do evento e adiantar, para ficar unicamente sobre cordel e dar mais visibilidade. A gente trouxe para os espaços populares, os espaços em que as pessoas estão. O cordel tem que ir para onde o povo paraibano está”, explicou Iasmin Mendes, uma das organizadoras do evento.

 

Stellio Mendes detalhou a programação da FLIC 2019, em novembro. Foto: Thiago Albuquerque

Segundo Stellio Mendes, um dos idealizadores da FLIC, “desafio na criação da Feira Literária de Campina Grande era manter viva a tradição de Campina como uma cidade de intensa e permanente manifestação cultural popular; então não podíamos ter uma feira literária sem que ela dedicasse um espaço muito especial à Literatura de Cordel, a essa tradição oral da nossa literatura. Decidiu-se que a FLIC faria, ao longo do ano, algumas atividades relevantes de projeção da leitura na cidade, como o que está acontecendo hoje”.

Mendes adiantou que a realização da Feira, este ano, será de 14 a 17 de novembro, no Centro Cultural Lourdes Ramalho. “A feira transcorre de quarta a domingo, sendo que quarta, quinta e sexta acontece nas escolas públicas, através de atividades realizadas com os alunos; a partir da quinta-feira à noite, sexta e todo o dia do sábado, as mesas redondas e as discussões gerais sobre leitura; e o domingo culmina com o piquenique literário no Parque da Criança”, relatou Stellio Mendes.

“Sobre a feira, acho muito bacana as pessoas que passam, pararem para assistir, popularizando a literatura de cordel”, disse Ádamis Oliveira, um dos poetas convidados. Ele é cordelista e estudante de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. Está no evento desde a primeira edição e se diz feliz por perceber que o encontro cresce cada vez mais. Àdamis explicou que começou a escrever dois anos atrás, tendo por sua grande inspiração Ronaldo Cunha Lima (1936-2012), poeta e ex-governador da Paraíba. Interessado pelos estilos de sextilha, setilha, décima, quadrão perguntado e galope à beira mar, diz que hoje já consegue de maneira natural escrever nessas modalidades.

Mas não foi só o local do Encontro que fez tudo se tornar mais especial; além das crianças que tocavam pandeiro e sanfona, uma poetisa ganhou seu espaço mostrando a importância da resistência do papel da mulher enquanto escritora de literatura de cordel. Dessa forma o público vai, aos poucos, aceitando a imagem de que esse tipo de escrita e declamação, que sempre foi masculina, possa ser um lugar que também feminino. É o caso de Kalianne Souza, uma das cordelistas nascida no interior da Paraíba e que tem seu apreço pelo cordel, que surgiu na escola, por estímulo de um professor de Português. O que era para ser atividade, para ela, virou a descoberta de um dom, que ela nunca mais deixou de explorar.   “Em todos os eventos que eu já fui, em todos os Estados, o público é muito masculino, no geral, é muito difícil encontrar mulheres; às vezes você encontra ouvindo, mas em termos de poeta é muito difícil. Me sinto feliz por poder estar ocupando esse espaço, e exalar a essência feminina na poesia, aí é uma honra muito grande. Às vezes a mulher tem uma poetisa dentro dela e não sabe”, falou, entusiasmada.

Na verdade, a missão das pessoas que estavam ali, na feira, é valorizar e espalhar a poesia – sendo pessoa que ouve ou que fala. Ver a arte escrita e falada invadir um espaço público e corriqueiro, em um lugar tão comum como é a feira, mostra a preciosidade de valorizar cada vez mais a cultura nordestina.

No palco do Cine São José o debate sobre o cordel foi a tônica por meio de mesas redondas. Foto: Thiago Albuquerque

Mesas redondas discutem aspectos do cordel

À tarde, a partir das 14 horas, o Cine São José foi palco de importantes debates, em nível acadêmico, de questões relacionadas à Literatura de Cordel. A primeira mesa – “A utilização do cordel como instrumento didático na sala de aula” – foi composta pelo professor Hélder Pinheiro, da Universidade Federal de Campina Grande, que abordou aspectos ligados à presença do folheto de cordel como elemento de incentivo à leitura, na sala de aula. Na oportunidade, ele citou vários exemplos de sua própria experiência de vida, para reforçar a ideia de que o cordel não pode ser utilizado para ensinar conteúdos escolares, porque não é essa a função da literatura. Deve, isto sim, ser apreciado como fruição, como narrativa em versos, pois assim cativa a atenção dos alunos.

 

Helder Pinheiro fala da importância de se planejar o trabalho com cordel na escola, para evitar apenas eventos pontuais. Foto: Thiago Albuquerque

A nossa reportagem o professor Hélder ressaltou: “é preciso conquistar o espaço escolar para a literatura popular, a literatura oral, porque, na nossa tradição escolar, só consideramos literatura aquilo que vem escrito, e existe toda uma tradição de oralidade, que não é escrita e que tem um valor estético extraordinário, e que é preciso ser levado para a sala de aula”. Mas, chama a atenção o professor, “é preciso um planejamento, é preciso formar os professores, é preciso dar acesso ao arsenal extraordinário dessa produção, para que não se fique fazendo coisas pontuais”. Hélder chama a atenção para o fato de que os cursos de Letras precisam preparar minimamente os egressos para o trabalho em sala de aula com literatura popular, oferecendo disciplinas que reflitam sobre essa questão.

Participando da mesa, a também professora Mirtes Waleska, coordenadora da FLIBO (Festa Literária de Boqueirão), apresentou a importância da literatura de cordel e da poesia popular em geral na formação dos futuros leitores. Refletindo sobre o espaço que a FLIC abre para a Literatura de Cordel, Mirtes afirmou: “há muito tempo, aqui em Campina, já se pedia uma movimentação com esse intuito de trazer o livro ou folheto de cordel da estante e levar para as pessoas que nem sempre têm acesso, nem sempre podem participar de eventos dessa natureza. Eu acho que nós temos grandes entusiastas, grandes cordelistas na nossa região que merecem espaço e merecem ser reconhecidos também pela sua obra e pelo que eles vêm fazendo, na promoção da leitura aqui no Nordeste.”

A segunda mesa, “Literatura de Cordel como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro: Reflexos e Desdobramentos”, abordou questões de pesquisa, apresentadas pela professora Joseilda Diniz, que desenvolve profundo estudo desse gênero literário, e que falou sobre o fato de a Unesco registrar a literatura popular como patrimônio imaterial da Humanidade, “reconhecendo nesses poetas orais, nesses saberes e fazeres, algo extremamente importante para o conhecimento da Humanidade, para a compreensão de todo esse processo de organização e transmissão de conhecimentos”.

 

Rosilene Melo mostrou o aspecto simbólico do reconhecimento da Literatura de Cordel pelo Estado. Foto: Thiago Albuquerque

Já a professora Rosilene Melo destacou que o reconhecimento estatal da Literatura de Cordel tem um caráter simbólico, de valorização oficial da cultura popular, já que, pelo povo, esse reconhecimento existe há muito tempo, mas também tem o aspecto prático de viabilizar o acesso desses poetas, individualmente ou através das associações a que estão ligados, a pleitear recursos no orçamento do Estado, através do IPHAN, para desenvolver seu trabalho: “A organização dos poetas foi o que deu a oportunidade de acontecer esse registro, porque, na verdade, o registro só se deu através da [luta da] Academia Brasileira de Literatura de Cordel, que é uma instituição dos poetas; por outro lado, aquela continuidade desse processo depende da organização dos poetas, é fundamental fortalecermos as instituições de amparo aos poetas e ao cordel”, conclui.

A terceira mesa tratou da participação das mulheres na produção de Literatura de Cordel: “Da autoria às personagens marcantes: o papel da mulher no cordel brasileiro”. O tema foi debatido pela pesquisadora Yasmin Andrade, representando o Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular, da Universidade Federal da Paraíba, que falou da experiência dessa instituição na promoção de estudos ligados ao tema. Completando a mesa, a poetisa Juliana Soares explanou sobre sua experiência com a poesia de cordel; ela, que vem de uma família de músicos, utilizou-se de recursos rítmicos da melodia para enveredar pela estrutura rígida do cordel.

Juliana Soares, uma militante que faz da poesia de cordel sua trincheira. Foto: Thiago Albuquerque

À reportagem do RJ, Juliana falou sobre sua principal inspiração: “O Nordeste; a temática e o contexto que mais me inspira é o Nordeste, ‘causos’ e pessoas nordestinas”. Identificando-se como militante, em seus diversos campos de atuação, Juliana Soares enfatiza: “a militância acontece através de uma luta diária, como professora, como mulher e como poetisa, que se concretiza na escrita dos versos”.Ouvimos também a opinião de duas poetisas, presentes ao evento. Anne Karoline, que mediou a terceira mesa redonda, falou-nos de sua atuação poética desde a infância, intensificada há pouco com o Projeto Cordel Personalizado, pela internet, “quando eu comecei a criar histórias de vida em cordel, e foi aí que meu trabalho começou a ganhar realmente uma repercussão maior, para todo o Brasil; comecei a trabalhar com declamação e fui ganhando outros espaços. Então, o cordel, para mim, abriu muitas portas.”

A poetisa e declamadora Aparecida Pinto comemorou a presença do cordel neste espaço de destaque: “O cordel está vindo como se fosse assim um renascimento. Este evento está fazendo com que aqueles que estavam no anonimato renasçam, para que a gente possa entender que o cordel, na verdade, nunca morreu. Ele canta e nos encanta. O cordel é nada mais do que a arte de nos fazer entender que esta arte é sentimento e jamais esquecimento”.

 

À noite, a Pirâmide do Parque do Povo foi o palco para os cordelistas e a musicalidade. Foto: Carla Patrícia

Encerramento do Encontro de Cordelistas no Parque do Povo

 

Yvna de Lima, de apenas 9 anos, declamou cordeis da sua tia. Foto: Carla Patrícia

O Encontro de Cordelistas foi encerrado à noite, depois de um dia cheio de atrações e poesia, na Pirâmide do Parque do Povo, com declamações de cordel, através do grupo Coletivo Cordel da Paraíba e da pequena Yvna de Lima, de apenas 9 anos, que declama cordéis escritos por sua tia. Esse é o segundo ano que Yvna participa do Encontro de Cordelistas, por meio da FLIC.

A apresentação principal ficou por conta do Quarteto Ypissilone, um grupo de música instrumental formado por Artur Vinicius (19), Ekarani Teles (19), Breno Felipe (23) e Eudes Albuquerque (40), alunos do curso de Música da UFCG. O quarteto existe há pouco mais de três meses, e foi formado com o objetivo de participar do Festival Internacional de Música de Campina Grande, que acontece no mês de julho. Como este é o ano do Centenário de Jackson do Pandeiro, a escolha do nome faz referência à música ‘’Sebastiana’’, composta por Rosil Cavalcanti e gravada pela primeira vez por Jackson.

O quarteto, que já se apresentou na Festa da Pamonha, em uma homenagem a Lucy Alves, conta que montou um repertório totalmente voltado para a comemoração dos 100 anos de Jackson do Pandeiro e para a Música Popular Brasileira, com canções que marcaram a cultura e tradição do Nordeste.

A apresentação atraiu um grande público para à Pirâmide do Parque do Povo, que se encantou com a sinfonia instrumental, que tocou grandes sucessos do cancioneiro brasileiro e, principalmente,  as mais representativas do Nordeste em período junino como “O Canto da Ema”, de Jackson do Pandeiro. Ao final da apresentação, o público aplaudiu e pediu ‘’bis’’; para finalizar esse encontro da melhor forma, o Quarteto Ypissilone tocou um dos grandes sucessos de Alceu Valença: “Anunciação”. De 14 a 17 de novembro, a poesia e a literatura voltam com a segunda edição da Feira Literária de Campina Grande – FLIC.

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